No início de novembro de 2024, um incidente envolvendo alunos da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC), no ABC Paulista, gerou polêmica e levou a uma denúncia de racismo. Durante uma atividade acadêmica, um cartaz com a frase “Entrada permitida somente para brancos” foi fixado dentro de uma sala de aula, simulando a segregação racial nos Estados Unidos, prática histórica que esteve em vigor até meados do século XX. A atividade foi parte de uma dinâmica pedagógica com o objetivo de analisar o filme “Histórias Cruzadas” e discutir as consequências jurídicas do racismo.
O Incidente e a Denúncia
A ação foi registrada em uma foto, que foi enviada via WhatsApp para outros alunos, e, rapidamente, o incidente chamou a atenção de vários estudantes. O advogado Juliano Amaral, aluno de pós-graduação na instituição, foi contatado por um estudante que recebeu a imagem e formalizou um boletim de ocorrência de racismo contra a faculdade. Este registro foi motivado pela insatisfação de alunos que consideravam a ação como uma prática racista, independentemente da intenção pedagógica alegada.
A Defesa da Engenharia
A FDSBC, em sua defesa, explicou que a atividade era parte de uma disciplina de Sociologia e Antropologia, ministrada por um professor branco, com o objetivo de fomentar discussões sobre o racismo e suas consequências jurídicas, com base no filme “Histórias Cruzadas” e em materiais complementares. De acordo com a instituição, a intenção era criticar a segregação racial, como mostrado no filme, e também o apartheid na África do Sul, onde foram utilizados ingressos diferenciados para brancos e negros, com o intuito de impactar o público e demonstrar a natureza reprovável da segregação racial.
Em um comunicado, a universidade afirmou que os cartazes foram colocados exclusivamente no ambiente da sala de aula e visavam fomentar uma reflexão crítica entre os alunos presentes. A instituição também destacou que este tipo de atividade tinha como intenção promover um ambiente inclusivo e combater práticas racistas, reforçando seu compromisso com a diversidade e inclusão.
A Reação dos Estudantes
Após o incidente, alguns alunos se manifestaram, afirmando que este não era um caso isolado. Alunos negros da instituição, que são uma minoria, alegaram não serem ouvidos e relatam que frequentemente enfrentavam dificuldades em denunciar comportamentos discriminatórios devido ao medo de represálias. Um dos alunos que preferiu não ser identificado afirmou que o ambiente na faculdade era hostil, com poucos estudantes negros se sentindo seguros para levantar questões relacionadas à discriminação racial. Ele também apresentou que a abordagem pedagógica adotada no incidente, de reprodução de cenas de conteúdo racista, foi extremamente problemática e sensível, considerando especialmente o contexto atual de sensibilização contra o racismo.
O Filme “Histórias Cruzadas” e a Crítica à Narrativa
O filme “Histórias Cruzadas” (2011), dirigido por Tate Taylor, foi escolhido como material para análise na dinâmica, mas gerou polêmicas, sendo frequentemente criticado por sua abordagem considerada “salvador branco”. A trama se passa no contexto da segregação racial nos Estados Unidos durante os anos de 1960 e gira em torno de uma escritora branca, interpretada por Emma Stone, que decide contar as histórias de empregadas domésticas negras que trabalham para a elite branca.
A crítica ao filme envolve a percepção de que a narrativa privilegia a jornada de redenção dos personagens brancos, em detrimento das lutas das mulheres negras. A própria atriz Viola Davis, que faz parte do elenco do filme, já expressou confiança por ter participado do projeto, destacando que as vozes das empregadas negras foram ofuscadas pela presença de personagens brancos.
As Consequências do Caso
A denúncia gerou um debate sobre a prática de racismo estrutural nas instituições de ensino superior. Frei Davi Santos, diretor-executivo da Educafro Brasil, destacou que, embora a intenção dos alunos fosse pedagógica, a ação foi uma representação do racismo estrutural ainda presente no país. Segundo ele, essa situação reflete um racismo inconsciente que ainda permeia as atitudes de muitos, especialmente em contextos educacionais.
Ele também criticou a falta de implementação efetiva da Lei 10.639/03, que exige o ensino da história da população afro-brasileira nas escolas, apontando que muitas instituições de ensino, tanto públicas quanto privadas, não cumprem a legislação. Segundo Frei Davi, a responsabilidade pela perpetuação de atitudes discriminatórias também recai sobre as universidades, que falham em oferecer uma educação que realmente combate a discriminação racial.
Histórico de Denúncias na Instituição
Este não foi o primeiro caso de racismo registrado na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo . Em 2018, um episódio de racismo e homofobia foi denunciado após uma pichação de um banheiro feminino com frases discriminatórias contra mulheres negras e lésbicas. Na época, a faculdade afirmou que uma sindicância foi aberta para investigar o caso, mas o episódio gerou críticas de que os casos anteriores não foram devidamente apurados, alimentando a percepção de que a instituição não tomava ações suficientes para reforçar atitudes discriminatórias.
O Contexto do Racismo Estrutural nas Universidades
O também trouxe à tona um debate mais amplo sobre o racismo estrutural presente nas universidades brasileiras. Estudos indicam que o racismo no ambiente acadêmico vai além de incidentes isolados, refletindo um problema estrutural que perpassa a cultura e os currículos das instituições de ensino. O movimento negro no Brasil cobrou mais ações de fiscalização por parte dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, além de exigir um maior compromisso das universidades com a implementação de políticas de igualdade racial e inclusão, como o sistema de cotas raciais.
Medidas Futuras
A Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo afirmou que medidas são tomadas para revisar a dinâmica pedagógica e estimular os debates sobre questões raciais dentro da instituição. A universidade também reiterou seu compromisso de promover um ambiente inclusivo e de combater a discriminação racial por meio de canais de denúncia, palestras e ações de conscientização.
Contudo, a falta de uma abordagem mais profunda e direta sobre a história afro-brasileira e o racismo estrutural nas instituições de ensino superior continua sendo um desafio, exigindo um compromisso mais eficaz das universidades para transformar o ambiente acadêmico em um espaço verdadeiramente inclusivo e representativo para todos os estudantes.
Este caso traz à tona uma questão central: o ensino de direitos humanos e a reflexão crítica sobre o racismo devem ser incorporados de maneira mais eficaz nos currículos acadêmicos para que episódios como este não se repitam, e para que a educação realmente contribua para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.